EDUCAÇÃO E DEFESA: AS NARRATIVAS QUE IGNORAM A REALIDADE
Em uma democracia, as disputas políticas fazem parte do jogo, assim como a previsão e decisão orçamentária. Governos são eleitos com a expectativa de implementarem as propostas e os pensamentos que promoveram durante o período de campanha. Uma das formas de implementação é, justamente, a organização e distribuição do orçamento para as diferentes áreas dos órgãos que compõem a administração pública. A atual proposta em discussão sobre o orçamento da união para 2021 expõe a realidade do momento atual na economia brasileira e mundial, bem como a implementação de algumas das promessas de campanha de Jair Bolsonaro. Por mais que certos setores critiquem fortemente as decisões da equipe econômica do governo federal, tais decisões condizem com os princípios pelos quais quase 60 milhões de brasileiros votaram em 2018. Embora coerente, isso não significa que é o certo ou o melhor para o futuro do país.
As consequências da pandemia de coronavírus podem claramente ser observadas na proposta de orçamento sendo discutida pelo governo federal: quase todos os Ministérios sofrerão cortes. Uns mais, outros menos. Saúde, Educação e Defesa sofrerão cortes. O Ministério de Ciência e Tecnologia e Inovações sofrerá um corte de quase 50% e ficará com orçamento quase igual ao da Advocacia Geral da União, que receberá aumento segundo a proposta. Para não me desviar do assunto principal, esses ajustes anuais previstos pela legislação fazem parte do jogo político e ainda sofrerão com o escrutínio, pressão e mudanças no Congresso Nacional. No Congresso, emendas parlamentares poderão corrigir ou acentuar algumas mudanças propostas pelo Ministério da Economia e esse momento será um grande teste para verificar a força do governo nas casas. Cabe a mim, aqui, destacar que é inócuo criar conflito entre Educação e Defesa quanto ao orçamento. São pastas distintas, ambas fundamentalmente importantes para o processo de desenvolvimento do país. Aos detalhes.
Se pegarmos a série histórica dos últimos 20 anos, entre 2000 e 2010 o MEC obtinha menos recursos que a Defesa. Em 2011, essa lógica se inverteu e o MEC passou a receber mais recursos que o MD. A previsão é de passados 10 anos, uma nova inversão aconteça para 2021, com a Defesa passando a receber cerca de R$108 bilhões e o MEC aproximadamente R$103 bilhões. Isso é ruim ou é bom? Seria leviano basear qualquer análise no puro fato de que o MEC passa a receber menos que o MD, pois há inúmeros outros elementos e diversas outras considerações a serem feitas desde a geopolítica mundial e regional até a eficiência dos gastos em cada pasta. Intuitivamente, é ruim. Intuitivamente é ainda pior a Ciência, Tecnologia e Inovação receber tão pouco. Afinal, intuitivamente a educação e a ciência devem estar entre os principais motores do desenvolvimento econômico e social. E sim, devem! E por isso mesmo qualquer redução nos orçamentos desses dois Ministérios deve ser vista de forma crítica e cuidadosa. Mas, ao mesmo tempo, é importante compreender que não serão os possíveis R$15 bilhões a menos para a Educação ou a diferença de R$5 bilhões entre MEC e MD os fatores essenciais para caótico estado da educação brasileira. Tampouco será o aumento no orçamento da Defesa a solução para o estado deprimente das Forças Armadas e da defesa nacional. Os problemas são outros, muito mais graves e muito mais complexos do pura e simplesmente recurso, dinheiro, grana.
Para não alongar muito, no caso do MEC o principal problema é a total falta de eficiência no uso do recurso público. O problema não é pouco dinheiro, é o péssimo uso do mesmo. Exemplos não nos faltam, desde o descarte de livros e material didático todo ano até o desperdício de alimentos nas escolas e universidades públicas. Licitações fraudulentas, compras duvidosas, projetos terrivelmente elaborados, pessimamente executados e raramente fiscalizados e/ou avaliados. O emaranhado burocrático, o aparelhamento ideológico e a falta de políticas de Estado arrastam a educação brasileira para o abismo da precariedade e do obscurantismo. O investimento em pesquisa de ponta é baixo, o interesse menor ainda. O sucateamento de laboratórios e centros de pesquisa muitas vezes se dá pela incompetência da máquina pública e não pela falta de recursos. A desculpa quase sempre é “falta recursos”, mas a verdade é que falta muito mais do que recursos, falta competência.
No caso do Ministério da Defesa e das Forças Armadas, o principal problema é o peso dos gastos obrigatórios. E destes gastos obrigatórios, a folha dos militares e pensionistas é a grande vilã. Até este mês de agosto de 2020, o Ministério da Defesa já executou 39.8 bilhões de reais, sendo 2.4 bi para subfunções associadas à função de defesa nacional e 37.4 bi para subfunções não associadas à função de defesa nacional. Estes 37.4 bilhões representam 93,9% do orçamento total executado do MD em 2020, sendo que 90,3% (33.8 bi) desse valor é exclusivamente para pagar a administração geral. Se seguirmos aprofundando, 93% destes 33.8bi são para vencimentos de militares da ativa, da reserva e pensionistas. Resumidamente, dos 39.8 bi executados pelo MD até agosto de 2020, 31.1bi foram exclusivamente para pagamento de folha de militares da ativa, da reserva e pensionistas. Quando uma empresa, seja ela pública ou privada, ou uma autarquia possui 90,3% do seu orçamento comprometido com despesas obrigatórias de pessoal, é natural que o discurso de faltar recursos para outras áreas seja mais frequentemente ouvido. Naturalmente, vai faltar dinheiro para investir em melhores equipamentos e mais tecnologia para enfrentar os desafios à soberania nacional.
Assim como no MEC, o caminho não é abrir a torneira e deixar escorrer mais dinheiro. O caminho é profissionalizar ainda mais as Forças Armadas e adequá-las para a realidade do século XXI, onde um conflito entre nações está cada vez mais distante ao passo que atuações em ambientes difusos e complexos cada vez mais presente, como o combate narcotráfico, terrorismo, grupos armados não-estatais, intervenções humanitárias, problemas de saúde coletiva e crises sanitárias para citar algumas. As Forças Armadas brasileiras precisam urgentemente se adequarem à realidade das transformações mundiais das últimas décadas e especialmente à realidade da dinâmica do Sistema Internacional no século XXI e as abordagens de segurança e defesa.
Por fim, o presidencialismo de coalizão duramente criticado por Jair Bolsonaro assume uma característica diferente neste governo. A coalizão não é com partidos políticos, mas com as fardas. Um dos redutos de apoio do Presidente está na caserna e embora sobrem críticas para a forma como o orçamento da Defesa é gasto, investir na defesa nacional não é um problema. Retirar da educação para investir na defesa nacional pode ser um problema. Hoje, sinceramente, não é. Pois, mais dinheiro para o MEC significaria mais dinheiro jogado pelo ralo pela falta de competência dos gestores da pasta e falta de planejamento estratégico para a educação brasileira. No entanto, faço forte crítica ao repasse adicional para o Ministério da Defesa inflar os seus gastos obrigatórios mantendo a lógica de comprometer cerca de 90% em folha de pagamento. É preciso urgentemente alterar esse quadro porque não se trata de cobertor curto, mas tampar o sol com a peneira porque o sucateamento da defesa nacional permanecerá enquanto generais e brigadeiros seguirão na beira da quadra de tênis reclamando no WhatsApp e Facebook da falta de recursos para garantir a defesa da soberania nacional.
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